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quinta-feira, 29 de março de 2012

ANJOS DE BICICLETA



foto: Gui Mohallem


São mais de 250, só na cidade de São Paulo. Eles acompanham e ensinam o ciclista iniciante a se movimentar pelas ruas da cidade. De graça, porque simplesmente adoram fazer isso.
 




Mig é o seu apelido. É um ciclista sênior, professor de flauta, velejador de windsurfe e bike anjo dos moradores da região onde resido, o Morumbi, um bairro de São Paulo. Seu trabalho como consultor de tecnologia lhe permite ter horários livres, que ele aproveita para ajudar voluntariamente quem quer desenferrujar a magrela e usá-la como meio de transporte alternativo ou lazer. Enquanto converso ao telefone a fim de marcar um horário para um passeio de bicicleta com ele, imagino que Mig é um bike anjo oriental, certamente professor de sakuhachi, a flauta tocada nos mosteiros zen do Japão. Seu apelido, Mig, imediatamente me faz lembrar outro nome parecido, o do senhor Miyagi, o inabalável mestre do Karatê Kid. Pronto. Ter um bike anjo como o senhor Miyagi ao lado é tudo o que se poderia desejar para quem, como eu, tem dificuldade em manter a linha reta na direção de uma bicicleta. Depois de me escutar atentamente e ouvir sobre minhas dificuldades em tirar as rodinhas auxiliares quando tinha 7 anos de idade e que já não pedalo há uns 15 anos, sendo a última vez num vilinha italiana com senhoras sentadas nas portas de suas casas para assistir a um carro passar a cada meia hora, o senhor Miyagi me fala gentilmente (todos os bike anjos são muito gentis) que é melhor eu começar a reaprender a andar de bicicleta coletivamente. Isto é, junto com outras pessoas no mesmo estágio que eu, em eventos que o pessoal do site dos bike anjos promove regularmente.

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Foi uma decepção. Eu queria começar essa matéria descrevendo minha sensação de liberdade descendo como um bólido a avenida Padre Lebret, como fazia quando tinha 14 anos. Mas entendi. Eu nem tinha ideia de onde ficava a tal praça do Ciclista, o local onde ocorrem esses eventos, que, para quem não sabe, fica no fim da avenida Paulista, pertinho da rua da Consolação. A verdade é que não havia quase nenhuma conexão entre mim e o mundo das bikes, ou coisas como cicloativismo (atitudes para tornar a cidade mais humana por meio das bikes), pedaladas (reuniões em que vários ciclistas andam juntos), Pedalinas (grupo de mulheres ciclistas de SP) e outros jargões que fui aprendendo durante as entrevistas. Para mim, uma vergonha de me deixar corada. Para ele, a iniciante ideal.

SEGREDINHOS DE INICIANTE
Como eu, Tarsila Mercer de Souza também encontrava dificuldade para andar em linha reta. Arrá, não era só o "meu" problema. Ela também tinha aprendido a andar de bicicleta tardiamente, aos 9 anos. Que alívio. O fato de o caçula da família saber dar cavalo de pau com a bicicleta enquanto a irmã mais velha não consegue se equilibrar na magrela pode se tornar um dos grandes traumas de infância. Fiquei feliz por ela ter tido dificuldades semelhantes no passado. Percebi que não era a única do mundo a ter problemas nessa área. Pelo contrário: como eu, assim era a maioria dos iniciantes do bike anjo - envergonhados, tímidos, hesitantes e inseguros.

Tarsila me confessa que levou dois meses para andar em linha reta, algo muito importante para se andar com mais segurança em ruas movimentadas. Dois meses, que maravilha... Eu me sentia obrigada a fazer isso imediatamente, ou, no máximo, na segunda "aula". Também me diz que começou a praticar na Europa há dois anos e que voltou louca para andar de bicicleta no Brasil. Mas, com o trânsito de São Paulo, não conseguiu fazer isso sozinha precisou do apoio monitorado dos anjos. Aproveitou o término de um namoro de quatro anos e torrou 500 reais numa bike nova, por impulso. "Precisava substituir aquele envolvimento por outro, superar aquele buraco...", ela diz. Santa ideia. Entrar nesse universo pode trazer alegria, companheirismo e gentileza dos seus pares, enorme bem-estar físico e participação voluntária em vários eventos sociais. E, no caso dela, até um namoro com alguém que conheceu nessas aventuras sob duas rodas.

O histórico de Tarsila é altamente incentivador: comprou a bicicleta em dezembro de 2010; em janeiro de 2011, teve o encontro inicial com seu bike anjo e participou de sua primeira Bicicletada (encontro realizado em São Paulo toda última sexta-feira do mês); em fevereiro, a primeira viagem até Santos de bike; em março, o início do namoro com um ciclista; em outubro ela se torna uma bike anjo e, em novembro, parte para sua primeira viagem internacional, no Peru, a fim de angariar fundos para a Unicef. Num ano só, uma revolução em sua vida. Com sua bicicletinha dobrável, com a qual vai trabalhar todos os dias, ela se tornou insuperável.

Pergunto por que ela quis se tornar uma orientadora para outros iniciantes. "Para praticar a gentileza e tornar a cidade mais humana, né?" É. Seguindo as orientações dos bike anjos veteranos, ela olha nos olhos dos condutores de automóveis, acena, sinaliza para eles com os braços, responde com humor a xingamentos ou cantadas, manda beijinhos a motoristas estressados e, incrível, sempre a-gra-de-ce a passagem e a primazia que lhe dão, mesmo ela tendo esse direito segundo as leis nacionais de trânsito. Trata os outros, e exige ser tratada, como um ser humano. Quanto mais Tarsilas aparecerem por aí, mais o mundo, o trânsito e a cidade podem melhorar.

POR RUAS FLORIDAS E SOMBREADAS João Paulo Amaral, um dos criadores dos bike anjos (movimento que se fortaleceu o ano passado e que já tem similar em Portugal e em outras cidades brasileiras), também faz diminuir meus temores. Ele ajuda a elaborar um projeto para ir da minha casa até o supermercado mais próximo, a uns 4 quilômetros. O que me deixa encantada é que esse projeto tem de ser agradável para mim, em primeiro lugar. Não precisa ser o mais curto. Posso passar pela ruazinha cheia de flores de que gosto tanto, ir por dentro de uma praça, escolher ruas com menos tráfego. Posso ter esse luxo e gastar só uns minutinhos a mais, o que é que custa? Num automóvel, essa possibilidade jamais me passaria pela cabeça.

Em segundo lugar, ele me aconselha evitar subidas muito íngremes e avenidas excessivamente movimentadas num primeiro momento. Mas também posso optar por ir ladeirão acima, desde que não troque a marcha no meio do caminho e tome impulso antes (marcha? que marcha?). E nas avenidas com tráfego intenso, que me assustem muito, João diz que posso parar e ir para a calçada. "Se enfrentar qualquer dificuldade, você pode fazer o percurso a pé, com a bicicleta ao seu lado. Não precisa fazer o caminho inteiro de bike. Ninguém a obriga a nada, você escolhe", João me tranquiliza. Não consigo evitar, e dou um sorriso de agradecimento. É incrível como os anjos adivinham todas suas angústias e medos.

Bem, vou me preparar para o evento coletivo na semana que vem, se conseguir uma bicicleta emprestada. Descobri que Mig é apenas o apelido (e as iniciais) de Marcelo Império Grillo, que ele não tem nada de oriental e muito menos de senhor Miyagi (mas imaginar como poderá ser seu bike anjo a partir do primeiro telefonema é certamente uma das grandes graças dessa história...). Enfim, acho que um mundo novo está me esperando por aí. Mas, por enquanto, só quero mesmo aprender a andar em linha reta e saber trocar de marcha.

QUER A AJUDA DE UM BIKE ANJO? Vá ao site bikeanjo e mande uma mensagem. Em alguns dias, a equipe responderá, com o contato de alguém em sua região. Além da capital e do interior de São Paulo, há anjos disponíveis em várias cidades do Brasil.

O que é esse projeto?
Pratique Gentileza! é um movimento da revista VIDA SIMPLES que tem como objetivo reconhecer e homenagear pessoas e disseminar iniciativas que estão mudando a maneira como nos relacionamos com os outros e com nosso planeta.

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